Três portas, outras tantas fiadas de janelas, cinco campainhas. A cidade e o rio. A chuva que amiúde cai e procura esconder as lágrimas da viúva, que recorda o abandono dos filhos.
A viúva mora na segunda janela do lado esquerdo, no piso em cima ao do senhorio alcoólico, também ele viúvo. Mas esse procura mais recordar as garrafas cheias do que mais gostava: Macieira. O brandy português, que quando acabava, ora o fazia chorar que nem uma criancinha, ora recolher as rendas do mês repassado.
O texto era para ser um pouco mais taciturno, Outonal e poético. Mas não sou capaz de escrever absolutamente nada de extraordinário. Começo bem, com a viúva, e depois com o alcoólico. Pretendia deter-me na vida da senhora, que de facto vive naquele prédio do Bairro da Bica e naquela janela em particular, e se esconde das janelas quando os dias estão agradáveis, e apanha sol como ela diz, apenas quando chove. Assim ninguém vê a sua tristeza. Toda a gente é triste. Mas poucos os que se apercebem disso. É como as maquinas: tudo uma questão de afinação.
Sinto-me completamente desinspirado para escrever alguma coisa com perspectiva, – ou profundidade como se queira – ou sobre a beleza. Sim sobre algo bonito. Sei o que é algo bonito, porque conheço algumas coisas bonitas.
“Esforça-te!” diz-me uma amiga com interesse e preocupação, mas a coisa não funciona assim. Não há poesia nem beleza à força. O ser da beleza, como disse a minha amiga está na chuva desta tarde. É tudo, tudo, e sempre, uma questão de afinação.